sexta-feira, novembro 14, 2014

Dois tragos, uma vida

                                                                                       Benoit Courti

Tarde de terça feira, três e quinze. O velho relógio sem pilha continua no mesmo lugar, apontando a mesma hora de ontem, antes de ontem. Estou sentado em minha velha cama, toda preenchida por furos e cinzas. Nunca tive um lençol branco, desde que Ana se foi, que durasse mais de um dia sem se tornar amarelo ou cinza. A TV em um canal aleatório, um telejornal qualquer, não sei. Pego mais um cigarro, fumo em três tragadas. Deixo-o de lado, tiro mais um.
Já são quase cinco da tarde, o dia começa a ficar sonolento pela janela. Eu começo mais um maço. Não sei mais se é o quarto ou o quinto. Calculo meu tempo pela quantidade de bitucas espalhadas pelo chão.
Desde que me aposentei e Ana partiu, não passo um só dia sem fumar. Cada tragada traz um pouco da vida que vivi, ou acho que vivi. Nem me lembro mais. Ana sempre dizia, com sua doce cara raivosa, “meu velho tire esse cigarro da boca, isso vai te matar um dia”. Mas ela foi primeiro e não fumava.
Já são oito horas, fumo meu último cigarro, tomo meu primeiro e último gole desse whisky barato que guardo na gaveta. Limpo as bitucas da cama, me preparo para mais uma tragada. Fecho os olhos e espero mais um dia, o último. Solto levemente a fumaça da certeza de minha decisão, a mesma que corrói e me traz mais para dentro da última tragada da minha vida.

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