terça-feira, novembro 25, 2014

Pensamentos do Pensar



Prendo-me em presas
lentas do Pensar.

Leves,

ligeiras,

intensas.

Feito o Pensamento

que me peguei

Pensando.

 

Penso no que se opõe

em meu tempo

a caminhar.

 

Rendo-me em crenças

e me desprendo a

Pensar.

 

Ouso um vácuo,

dois ou três minutos,

mas rendo-me ao fato

de ter de pensar a cada minuto.

terça-feira, novembro 18, 2014

20 segundos

                                                                  Charles Leval

Uma pequena crônica de um dia semi perdido

Rasgo o verso em gritos prontos. Seco, feito papel. Passo raiva feito poucos. Era para ser duplamente feliz, pois todo momento feliz só faz graça se tiver mais um para rir. 
Soco a tela, aperto sem parar a tecla. Resmungo baixo, pois todos ouvem. Aperto sem parar o celular. "Eaí? Deu? Eita! Como assim?". Apitando feito alarme a soar.
Atualizo e tento de novo, penso alto, Esse CEP tá certo? Não brinque ok, 500, Boa Viagem. Foi. E não foi.
Vinte segundos entre um clique e o fim. A dura palavra que se destaca no topo da página, não pode ser já era. Só ano que vem.
O apito vira vibração e a tela um pisca-pisca ininterrupto. E agora? Como escrever que não tinha ocorrido, o que deveria ter sido? Tristes, poucas palavras ecoadas pelas teclas de um teclado de tela. Não deu. 
E depois a frustração, jogada na cadeira. Todos ao redor sem notar. O celular sempre a apitar. E então surge a raiva, os palavrões e a tentativa sem chance de dar F5 na página travada. E lá no alto as duras letras de um dia semi perdido. 
Muitos vão chamar de drama de TPM vencida, mas não, é apenas um assopro que empurrou mais para frente um plano traçado. Mas, todo plano tem uma tecla mal sucedida, para que, lá no fim, bem perto da conclusão ela faça parte de um teclado que irá escrever o enredo final.
E surge a dúvida, os por quês, as perguntas que não foram feitas no momento da euforia do ponto anterior, pois uma parte foi concluída, a outra ficou por 20 segundos. 
Entre a raiva e a frustração surge à calma, pois ainda há chance. E de chance em chance se faz outro apito na tela menor. “Eii, calma, vai dar certo. 2015 é logo ali".


sexta-feira, novembro 14, 2014

Dois tragos, uma vida

                                                                                       Benoit Courti

Tarde de terça feira, três e quinze. O velho relógio sem pilha continua no mesmo lugar, apontando a mesma hora de ontem, antes de ontem. Estou sentado em minha velha cama, toda preenchida por furos e cinzas. Nunca tive um lençol branco, desde que Ana se foi, que durasse mais de um dia sem se tornar amarelo ou cinza. A TV em um canal aleatório, um telejornal qualquer, não sei. Pego mais um cigarro, fumo em três tragadas. Deixo-o de lado, tiro mais um.
Já são quase cinco da tarde, o dia começa a ficar sonolento pela janela. Eu começo mais um maço. Não sei mais se é o quarto ou o quinto. Calculo meu tempo pela quantidade de bitucas espalhadas pelo chão.
Desde que me aposentei e Ana partiu, não passo um só dia sem fumar. Cada tragada traz um pouco da vida que vivi, ou acho que vivi. Nem me lembro mais. Ana sempre dizia, com sua doce cara raivosa, “meu velho tire esse cigarro da boca, isso vai te matar um dia”. Mas ela foi primeiro e não fumava.
Já são oito horas, fumo meu último cigarro, tomo meu primeiro e último gole desse whisky barato que guardo na gaveta. Limpo as bitucas da cama, me preparo para mais uma tragada. Fecho os olhos e espero mais um dia, o último. Solto levemente a fumaça da certeza de minha decisão, a mesma que corrói e me traz mais para dentro da última tragada da minha vida.

quinta-feira, novembro 06, 2014

O aroma do vapor

O breve pesar da cadeira de balanço
vai o vento,
vem o encanto.

Sorriso, calmo
canto de rosto.
A velha casa em contornos
vai o tempo, 
vem teu rosto.

Em seu tique taquear de dedos
cruza um jeito
vem de encontro.

Sobre a mesa
medos, sorrisos,
lembranças.

A chaleira esfumaçante,
vem o vento,
traz vapor.

Olhos calmos, rasos.
Um vem e vai
de espaços,
cheiros
e sabor.


domingo, outubro 19, 2014

Em mim




Era para ser um pouco meu. Mais meu do que seu. É, praticamente meu. Não em posse, mas em jeito. Se encaixa em todas as canções, o que se idealiza em todas as direções.
É um reflexo, o da janela no fim de tarde. Eis que nesse momento toca, aquela que te define. Em mim.
Nem ao vivo, nem à distância, em mim já és.

"Um dia eu vou ficar bem só pra te querer mais, onde quer que eu ande bem, domingo é pra te dar paz"...

Aquilo que só em mim se faz. Não assuste, não me assuste. Cada letra nesse branco, cada melodia nesse canto. 
Poesia de um domingo chuvoso. Versos de um acaso que procura encontro.
Em mim.


~~
Desenho: Laís J. Silva

quinta-feira, outubro 09, 2014

Esse texto não merece um título



Esse é um texto escrito com raiva. Não pelas palavras, mas pelo momento no qual estou escrevendo. Escrevo esse texto sob o efeito das piores sensações que já senti pelo ser humano: fúria e indignação. Não, não espere que eu lhe de o motivo, nem o causador de tal mal, pois não consigo reproduzir ato tão absurdo, nem falado, nem escrito. Usar do poder e da magia das palavras para reproduzir tal infâmia seria desonesto com o poder de cura que elas exercem sobre mim.
Esse é um texto que se tivesse gosto seria o mais amargo que você possa imaginar. Aquele gosto de cabo de guarda-chuva que você sente quando o mundo despenca. Meu mundo não despencou, mas uma boa parcela da esperança que eu tinha nele sim, talvez a mais bonita delas, a fé na humanidade. Este é um texto que se encaixa em qualquer momento em que você precise ocupar um espaço, porque, mesmo coberto de lacunas é melhor do que vê-lo em branco. Branca é a cor da paz que eu não sinto nesse momento.
Este é um texto escrito sob uma chuva de lágrimas. Frias e ao mesmo tempo quentes. Lágrimas de indignação, dor, raiva, vergonha. Esse é um texto que está sendo escrito, porque preciso manter minhas mãos ocupadas para não socar a parede, pois mesmo com todo o mal, prefiro a violência das palavras.
Esse é um texto que bem poderia conter uma porção de palavras de baixo escalão, mas já proferi todas elas através da fala. Deixo a escrita para que me acalme o coração e a alma. Não por agora, mas que me mantenha ao menos parada, pois rodar em círculos só me causou dor de cabeça.
Essas são palavras que escrevo com a minha cara mais enfurecida, com meu rosto já inchado de tanto chorar. Escrevo para deixar registrado que a crueldade do ser humano me revolta, em todos os seus aspectos. Mas contra os indefesos, ela me deixa possessa.
Esse é um texto que escrevo, porque não consegui manter minha cabeça no travesseiro e porque cavar um buraco no assoalho e me enterrar só me faria ter mais despesas do que consolo. E o consolo que encontro aqui, nem o mais acolhedor abraço pode me dar.
Esse texto é uma prece, pois peço perdão a quem quer que esteja me ouvindo por algo que não fiz, mas que tenho vergonha de saber que alguém fez. Esse é um pedido de socorro, porque preciso acordar desse pesadelo. Quem quer que seja que está aí, acenda a luz, pois desse escuro eu quero sair.
Esse texto é uma terapia, desenvolvida em doses homeopáticas de consoantes e vocais. Essas são palavras sobre um desespero, calculado pela raiva e por vezes pelo desprezo. Mas, principalmente pela impotência da minha distância e da de quem esteve presente.
No ardor desses maus sentimentos, busco aqui, folha em branco, o que ninguém pode me dar. Paz.

sexta-feira, setembro 26, 2014

Vista-se de luz


Perca-se. Ás vezes é bom não encontrar sentido no sentido comum. 
Crio-me desses pequenos momentos de exatidão, regados ao som da insônia e ao doce gosto amargo da solidão.
Perca-se em si. Mova-se para dentro. O que os pés não sentem, o coração não anda.

Seu eu no outro



Reconheço todos os rostos que vejo na rua. Parece que cada um deles me foi apresentado em algum momento dessa vida. Talvez ontem, talvez hoje, ou no passado. Reconheço todas as faces, os olhares. Alguns me encaram como se também me reconhecessem, outros disfarçam, alguns nem notam.
Cruzo cada rosto na rua, no transporte, no trabalho, na mesa de bar, no reflexo de algum espelho, vitrine, vidro. Todos os rostos me são familiares. Talvez você espere que eu relate o que neles me atrai, mas não, apenas me sinto próxima. Sei que boa parte nunca ouvirá meu nome, escutará minha voz, ou me retribuirá um sorriso, uma gentileza. Apenas os observo, assim como prevejo o passar dos carros na grande avenida.
Um olhar é sempre único, uma desviada de cabeça é sempre única. Aquele que disfarça, ou aquele que corresponde, nenhum deles é igual. Nunca fui muito de encarar uma pessoa nos olhos por muito tempo, sempre perdi essa brincadeira na infância. Fixar um olhar pode te desnudar por completo. Mas quando fixo o olhar em um rosto desconhecido é como se para ele eu pudesse olhar fixamente. Sem piscar, sem pestanejar, mostrar que eu o reconheço. Simples, complexo, calmo, conturbado, sincero. Dessa forma os reconheço.
Todos os rostos que me são familiares são aqueles que me tornam uma incógnita para quem me conhece. Desnudam-me pelo simples fato de nem saberem meu nome, mas que me encararem fixamente no olhar. Sem deixar entreaberta a janela das aparências. Essa sou eu, esse é você. É por isso que os reconheço. É por isso que me são familiares. 

sábado, agosto 23, 2014

Dias de luas



Há em mim algo da noite. Nunca fui dela, mas me rendo.
Nunca deixei que a insônia me fosse aliada, mas sempre tive dias em que ela esteve presente.
Sempre fui do dia, da poesia do sol, das cores. Mas há noites que me prendem. Feito o último gole.
Todo poeta vive de noites mal dormidas, de copos bem bebidos e de dias mal vividos. E eis mais um dia de lua.

sábado, agosto 02, 2014

Quantos tantos cabem ao ato



Quadros,
quadras.
Quadrados de quantos.
Dedos
uns tantos

Prantos em quadrantes,
em quadrilhas do meu quarto.
Ato, cato, mato.

Ajo, ao tato. 
Me empato,
ao fato
ao quanto
ao tanto.

Quadros de quadras,
quatro quadras 
à direta do quanto.

quarta-feira, julho 23, 2014

A escada rolante



Caminhar pelas estações do metrô de São Paulo é qualquer coisa parecida com mergulhar em um mundo paralelo. Todos os dias, eu subo e desço as escadas da Consolação. Certas vezes pela rolante, ou, quando a pressa me obriga, corro as escadas que não se movem, mas que estáticas e rígidas, nos impõe o trabalho pesado de simplesmente subir as pernas e alcançar mais um degrau.
O mais engraçado nesse vai e vem de pessoas é notar como cada uma delas, nesse curto espaço de tempo entre a subida e a descida da escada, nos são parecidas e ao mesmo tempo completamente diferentes. Quando desço as escadas, sempre pela manhã, a cara amassada da maioria delas (e a minha) me impede de prestar muita atenção aos gestos e expressões. Na volta, quando subo as escadas, geralmente a rolante, porque convenhamos no final do dia o que mais precisamos é de uma máquina que faça o trabalho pesado pelos nossos pés!
Ao subir a escada rolante me transporto para um mundo novo. Subindo cruzo com a escada que desce e posso, nesse instante, reparar em cada rosto, gesto, sorriso, olhar de quem está indo ao encontro do velho trem.
Ali vem a senhora com a roupa fina e o nariz empinado, logo atrás o casal de namorados, onde um sempre desafia a gravidade descendo de costas simplesmente para ficar mais alguns segundos observando o ser amado. Mais acima, a menina que vem se equilibrando com seu pequeno espelho enquanto retoca o batom vermelho. Mais abaixo, a criança que ignora veementemente as ordens da mãe e fica subindo e descendo ao contrário. Ao longe, avisto o belo rapaz de cabelos lisos, ele me olha, mas eu desvio. Lá no topo a senhora hesitante, não sabe qual pé coloca primeiro e na dúvida dá um pulinho se agarrando ao corrimão oscilante e me tira um sorriso. Lá vem mais um adolescente que desce sem nem ver, um olho no celular outro no mp3.
E eu estou ali, subindo e observando o constante vai e vem. Aquele pequeno intervalo de tempo entre o chão e o topo. Todos aqueles rostos, todas aquelas vidas. Elas que me ignoram e nem ao menos sabem que me intrigam.

Há dias em que a cabeça pesa, e no caminho até a escada vou mastigando meu dia a dia, chutando as pedrinhas imaginárias dos meus problemas. Às vezes venho conversando, mexendo no celular, rindo, cantando. Mas me deparo com a escada. Noto que cada degrau que vai subindo lentamente me faz um convite para arriscar mais uma subida. Paro e hesito, assim como a velha senhora, e dou o primeiro passo. E lá estou eu novamente, cruzando vidas em rostos, em busca de acolhida.

quarta-feira, junho 18, 2014

Solar das bromélias

Era domingo, mais um domingo. A família estava toda reunida, as sobrinhas, minha filha que viera com seu marido insuportável, minha neta e, sua espécie de namorado. Eu, François Oliveira, sempre estive cercado por mulheres. Era o homem da casa, sem dúvida. Quando me casei com Margarida, no dia 15 de novembro de 1970, um dia escolhido por mim, não sabia que meu destino continuaria reservado a elas. Tive uma filha e apenas sobrinhas.
Alistei-me no exército, me casei, tornei-me professor de português. As letras sempre foram minha paixão. Lecionei por quase 35 anos, pois considerava que era na juventude que podíamos formar o caráter das pessoas. Esse sempre foi meu objetivo de vida, formar cidadãos conscientes e instruídos. A política era minha segunda paixão, votei em todas as eleições, coleciono todos os comprovantes, estão na terceira gaveta do quarto, ao lado das minhas medalhas do exército. Não acreditava que a boa parte das pessoas desse país não desse atenção a política. Nunca deixei de introduzir o assunto em todos os locais onde frequentei. E a mesa do almoço de domingo era um desses locais favoritos.
Melissa, minha neta, tinha trazido seu namorado para nós conhecer. Ele tinha cabelos longos demais para um rapaz de bem, usava colares e pulseiras suspeitas e, pior de tudo, usava um brinco de cigana. Ainda suspeitei que tivesse visto uma tatuagem pela manga de sua camiseta, mas achei que poderia ser apenas sujeira devido às condições de sua aparência. Eu o encarei com minha expressão mais dura, Melissa remexia as mãos sobre a mesa desconcertada. Joana, minha filha, tentava tirar o foco do garoto, mas eu não dei o braço a torcer. O banana do meu genro agia como se tudo aquilo fosse normal. Ofélia, minha irmã mais nova, quebrou aquele instante falando:
_ Vocês viram as fotos da confusão da greve dos motoristas de ônibus? – disse, me fazendo virar o rosto pela primeira vez.
_ Acho um absurdo. Esses vagabundos atrapalham a vida das outras pessoas com esses movimentos infundados, patrocinados por essa esquerda medíocre que assumiu esse país – lembro-me dessa fala, utilizava-a com frequência.
Vi pelo canto do olho que Melissa revirou os olhos e fitou o namorado. Pela sua expressão ele se segurava para dizer alguma coisa. Encarei-o e disse:
_O senhor dos cabelos e brincos de mulheres quer dizer alguma coisa? – o garoto me encarou sério, aquele velho olhar de petulância que todo jovem mal educado possuía e que eu conhecia bem.
Ele se levantou, se despediu e saiu da mesa, com Melissa ao seu encalço. Todos se entreolharam e me encararam. Aquele olhar que já estava associado à maioria dos almoços de domingo. Esse olhar que sempre me acompanhou. Sempre achei um triunfo levá-lo comigo e ainda o levo como prêmio, mas não mais de vitória.

Era domingo, mas não havia almoço, nem as meninas. Apenas eu, aquele olhar e as plantas frescas e coloridas do jardim. Aquele colorido incomodo que envolvia a placa de entrada: casa de repouso solar das bromélias.

quinta-feira, maio 29, 2014

Aperto do tempo



Aperto do tempo

 

Vindo da sombra.

Rastro que zomba.

Reflexos conexos

espelhos de lua.

 

Vinda do dia

me traz poesia,

pele macia.

 

Ao passo do vento

és sofrimento;

 

Ao canto do pássaro:

prende,

me vira,

num rastro.

 

Terra, brilha.

Ilude, excita.

 

És como a vida:

num passo

um compasso,

num falso

acolhida.

 

Ponto, meu guia,

me cria.

 

Me pego em seus olhos

oh triste

linda,

menina.

~~

(Poema feito para a oficina de escrita criativa da Casa Mário de Andrade)

E a poesia me descobriu...

segunda-feira, maio 19, 2014

Jabuticaba



A jabuticaba em sua boca.
Sentido que me deixa louca
O avental, a mesa.
o elástico solto.

Olhar hipnótico,
sorriso simplório.
Brilho constante.

Toque envolvente,
ouvido presente.
Aqui e agora.
Te quero,
não demora...

quinta-feira, maio 15, 2014

Polvo



Todos os rostos
Pouco negro,  pouco branco
Um cor de rosa
Uma cor de jambo

Um pálido embaço de uma indecisão
Moreno claro, negro desbotado, castanho amarelado
Cor de outono, cor de junho

Essência negra
em uma pele que se quer branca

Eis um cenário onde todo azul
quer ser verde
onde todo preto
quer ser branco

Eis uma essência de múltiplas cores
transvestidas em rostos
transbordando o emaranhado de toda uma gente

Uma essência de rosas
salmão, marrom
alvo amarelo

O mesmo rosto,
diversas marcas de uma mesma
descrição

Sou da cor do povo
polvo
um mesmo coração



~~

Esse poema, sem rimas, me veio enquanto observava a exposição Polvo de Adriana Varejão. Porém, não é preciso rimar quando se precisa apenas encaixar as palavras a seus sentidos. Galpão Fortes Villaça, até 17/05.

sexta-feira, maio 02, 2014

Exigiria do tempo essa fatídica ideia de que o agora e o para já fossem menos dolorosos para aqueles que vivem da ociosa paixão de esperar.

quinta-feira, maio 01, 2014

Devaneios de domingo


Thássia Moro

Era tarde de domingo de primavera, exatamente 15:33. Um dia comum, como a maioria dos dias. As flores no jardim davam a falsa impressão de comodidade, eram belas, coloridas e se espremiam por um espaço ao sol no pequeno canteiro ainda não revirado. Lá estava ela, sentada a beira do jardim, mexendo nas flores. Parecia destoar da paisagem, a rua em movimento, mas calma, e ela lá em seu canto costumeiro, ia sempre revirar o jardim do prédio. Ele a observava, cheio de interesse e uma espécie de desprezo. Parecia louca, perdida em pensamentos. Não sabia até hoje por que nunca ninguém havia a impedido de mexer em um ambiente da área comum, será que pensavam que ela o arrumava? Para ele parecia que ela o deixava em pedaços toda vez que se sentava ali. De um lado para o outro, a cabeça em movimento, como uma dança que só ela sabia.
Ela era a vizinha de algum andar, não sabia ao certo qual, cruzará uma ou duas vezes nas escadas e no hall. Parecia que nunca pegava o elevador. O prédio não era alto, nem haviam tantos apartamentos, mas não sabia qual ela morava. Tentará indagar o porteiro, mas de tão distraído ao futebol e a vida alheia, temia ser mais um assunto na seleta lista fofocas dos condôminos. Preferia a descrição.
Nunca trocara uma palavra, nem bom dia, nem boa tarde, muito menos boa noite. Nunca a vira de noite. Apenas uma vez se entreolharam, simples. Olhos escuros, profundos. Cabelos negros, ondulados como o mar, bonita feito uma oferenda a Iemanjá. Era assim que gostava de imaginá-la. Perdia-a pela rotina, mas quando chegava domingo tirava-a dos devaneios e das gavetas do cotidiano. Quando chovia ela não vinha, sumia feito fumaça. Uma nuvem de comparações. Gostava do céu aberto, do sol na pele. Branca feito uma nuvem de dias de verão. Nunca se escondia dos raios, por mais fortes que fossem, eles pareciam não se arriscar a machucá-la, não ficava vermelha, nem bronzeada. Talvez um pouco corada, mas de longe não podia ter certeza, apenas imaginava.
Em tempos normais teria descido e tirado ao menos duas palavras daquela boca, mas hoje não. Talvez na próxima semana. Perderia o ângulo do balançar silencioso da cabeça em seu vai e vem enquanto retirava uma planta morta, uma erva daninha. Intitulara como uma contemplação. Algumas vezes colocava uma música ao fundo e passava horas observando-a. Um sorriso no canto do lábio, pequeno. Como se a conhecesse, como se permitisse o momento de solidão e prazer que a mantinham naquele jardim.

Algumas vezes achava que ela plantava e arrancava a mesma flor repetidas vezes, mas quando passava observando no outro dia notava que não, ela apenas abria o espaço para os pequenos brotos nascerem.


(Continua...)

terça-feira, março 18, 2014

A outra metade

A impunidade nesse país é tão gritante que não importa quão absurdo possa ser o fato, como os tristes casos da Claudia e do Amarildo, eles vão passar impunes de uma maneira ou outra. Seja pelo tratamento como são dados pela mídia, seja pela impunidade latente da nossa justiça, seja pelo esquecimento e desconhecimento de boa parte da população. Somos todos vítimas dessa chacina contínua chamada sociedade. 
Eis aqui uma gota da revolta de alguém que se depara com o sofrimento de quem não pode gritar, nem ser ouvida. A violência atinge a todos. Não podemos nos acostumar com o absurdo, nem deixar de refletir sobre os efeitos deles na rotina desse país. A evolução parte do coletivo e esse é mais um ano decisivo na história desse Brasil tão desigual. E mais da metade das pessoas vão esquecer os casos. A outra metade vai ser taxada de chata, pois sempre irá se lembrar e buscar lutar. Escolha seu lado.


"Só falta alguém espremer o jornal
Pra sair sangue, sangue, sangue"










segunda-feira, março 17, 2014

Angústias

Aquela dor e aquela necessidade de sair do lugar sem se mover. Angústia, o passatempo dos que se ferem e preferem não se permitir tudo aos poucos e aos muitos. A limitação interior é o oposto do que se vende por aí, mas mesmo tentando, nem sempre é possível comprar seu antídoto. É preciso tomar doses de exemplos e desassossegos. 
Imaginar uma vida que não é sua sendo sua é tão comum quanto encontrar quem venda receitas para combater a angustia de um domingo a noite. 
É preciso abrir espaço para que seja possível criar laços, pois o único aliado da angústia é o medo, que feito uma moldura mal pendurada só faz serventia ao prego que sustenta menos peso.
Libertar-se para ser livre. Jargão de todo começo de semana que nem sempre surte o efeito desejado. 
Angustias de cada dia, livre-me da insônia que o resto eu equilibro na moldura da semana.

sábado, março 08, 2014

Cronologia de um eu

Houve um tempo em que o silêncio era o senhor da razão. A reflexão, o ato de se recolher em seu eu, era o ponto alto da sabedoria humana.
Haviam aqueles que se sentavam em uma pedra no alto da montanha, ou se escondiam em cavernas. Refletindo. Com o passar dos anos escrever, ler, se tornou uma parte importante desse silêncio interior. Não havia necessidade da fala se as palavras podiam gritar pelas folhas escritas.
Chegou um tempo em que o diálogo ganha sua função, dizer aos outros o que o eu está pensando, sentindo.
E nasceram as loucuras. Os gritos, a necessidade se partilha sem se perder. E foi nesse momento que partiu o ato da reflexão. Nos dias de hoje o diálogo evoluiu, se tornou modelado conforme cada eu. Nem sempre perfeito, nem sempre constante. O futuro promete a volta do silêncio, o diálogo com seus dedos e com uma pequena tela. Perca-se em um mundo recheado de egos confusos tentando dividir a atenção de um eu sozinho. Mesmo onde há sempre um lado positivo, a falta da evolução do diálogo ainda irá sufocar a humanidade dentro de uma caverna, ou escondido em uma montanha que cada um lapidou.


sexta-feira, fevereiro 14, 2014

A única estrela no céu de uma noite sem fim


Madrugada de 14 de fevereiro de 2014

A dor da perda é a dor que mais me intriga. ela vem sufocante, te prende a fala, o ar. Te consome lentamente, seja um minuto, dois, uma vida. Nos agarramos no pretexto e caçamos as culpas. Mas só há a exatidão do vazio. Apenas ele, tão calmo e simples.
As lembranças se tornam alento, o futuro um desespero. Nossa única certeza na vida é que um dia a morte chega, mas não aprendemos a lidar com ela. Abraços, consolos e lágrimas nos prendem e nos libertam. O que permanece é o brilho, esse nunca se apaga. Assim como a única estrela no céu está noite.
Cada etapa tem seu caminho, mas toda trajetória tem um fim. Como sabemos, só o tempo reconstrói e fixa o que for preciso. Para quem nunca deixou de brilhar, nem a eternidade terá o poder de apagar. E o que nos resta é ir reacendendo a cada dia esse brilho que renasce.
Existem infinitos finitos, mas existem brilhos que são eternos. Só a certeza da lembrança é o que nos mantém firmes em nossa fé.