sexta-feira, março 16, 2012

Branca amarelada


Era uma limpa extensão branca, detalhada e minuciosamente encaixada com azulejos também brancos. Era assim que começava a história daquele que conta seu passado sem páginas. Em cada pedaço branco, talvez nem sempre tão limpos, um pedaço de redemoinho era plantado. Uma pequena folha, um desenho, expressões, frases, fotos, figuras. 
Cada adereço implantado era colado com aquele cola mal feita furtada silenciosamente do filho do dono da mercearia da esquina, o menino colava as figuras ora com a saliva, ora com a cola. A cola nem sempre era verdadeira, todo mundo lá na escola dizia que o dono da mercearia, por tão mão de vaca, sabia quando o pote estava no fim e enchia o pobre com uma água meio branca que alguns juravam ser santa. Essa cola fazia sucesso. 
A história daquele que encaixa sua vida no livro sem notas passava pela beirada da vida do menino da cola mágica. Aquela que nunca tinha fim e vivia na barriga de muita criança ao fim de cada aula de figura e papel.
Procure deixar uma tesoura, pedaços de figuras e uma cola danada de boa perto de uma meninada na escola. Ou sai todo mundo direto para a mesa da enfermaria ou uma obra sai disso. E não entendam por obra aquilo que o dono da mercearia estava fazendo no fundo da sua loja. Era obra mesmo, daquele que você só encontra na sala da diretoria, na televisão da velha senhora rica daquele casarão.
E a cola que não tinha fim era grande protagonista das colagens da parede azulejada, meio amarelada, a dona do enredo do pedaço. Foi essa cola responsável por horas de tentativas frustada em encaixar o que precisava e não parava. A arte da cola era teimar em ser obra por si só.
Antes de mencionar o desfecho da história daquele que conta seu passado sem páginas é bom notar um certo item não mencionado ao centro da parede branca de azulejo. Um telefone com fio.
O fio é o de menos, se não levarmos em conta o limite que ele impõe ao objeto símbolo da comunicação naquele século que parece já tão distante. Limite, não estou falando daquele que o dono da mercearia impõe ao filho em relação ao tempo que ele faz colagens. O limite daquilo que expande a comunicação, o contato, mas sempre nos prende as suas condições. Talvez esse seja um ponto chave nas colagens da história sem rodapés. O telefone em si, aquele que te aproxima e te afasta foi o cenário escolhido e premeditado para ser papel central na história. O pequeno ali, sério, fixo, sem interrupções, esperando para ser discado é o propulsor de algumas palavras chamadas saudade, tristeza, alegria, sorriso e incapacidade. 
O dono da mercearia tinha um igualzinho no estabelecimento dele, mas só os clientes usavam, o dele próprio não tinha fio. Causava a velha sensação de pensar que tem poder sobre algo e não ter. Essa era a função do fio. 
E como termina a história? Ela não termina, ela se descola, a magia da cola de sucesso feita a base de água e mentiras não dura muito tempo. Ela cai lentamente sujando o branco amarelado dos azulejos e a página que nunca existiu fica marcada como fora do limite do fio. E o telefone toca. E ao levantar-se observa o dono da mercearia a fechar as portas, desligar a luz e ir correndo ao telefone, recontar as histórias que ouviu de dia em seu balcão.
O telefone toca e não é nada além do seu fio riscado mais uma imagem sem cola da parede azulejo branca amarelada.

Nenhum comentário:

Postar um comentário